"O Cuidado Integral" - Roberto Crema



Por Roberto Crema (Psicólogo e Antropólogo - Reitor da Universidade Internacional da Paz, Rede UNIPAZ).


Há cerca de trinta anos que a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou um apelo vigoroso, que assim podemos resumir: Todas as pessoas precisam se tornar agentes de saúde, pois o planeta inteiro está enfermo!

Considero o Colégio Internacional dos Terapeutas, CIT, uma resposta inteligente e efetiva a esta convocação da OMS, sobretudo pela resignificação do conceito de terapia como uma arte de cuidar, aplicada à ecologia individual, social e ambiental.

Na abordagem do CIT, a função do Terapeuta é a de cuidar da saúde, de forma preventiva – e não a de somente se ocupar da doença, que significa o fracasso da terapia. Por esta razão é que, na tradição chinesa, a pessoa deixa de pagar aos seus Terapeutas, quando se torna doente... A tarefa fundamental do Terapeuta é a de levar o individuo, a sociedade e o meio-ambiente a um estado crônico de saúde.

Por outro lado, a própria OMS nos lembra que a saúde não é um mero estado de ausência de doenças. Antes, trata-se de um estado de bem-estar psicossomático, social, ambiental e espiritual. Inspirados nesta lúcida definição, o CIT do Brasil classifica os Terapeutas em três categorias: a clínica, destinada aos médicos, psicólogos, enfermeiros, etc.; a social, destinada aos educadores, empreendedores, políticos, etc. e a ambiental, destinada aos biólogos, arquitetos, ecologistas, etc. É fundamental democratizar a função terapêutica, pois a crise que estamos vivendo é a de falta generalizada de cuidado.

Lembro-me de uma passagem, didática e divertida, de um notável Terapeuta da tradição tibetana, Chagdud Tulku Rimpoche. Ao iniciar um seminário, na Universidade Internacional da Paz - UNIPAZ de Brasília, numa véspera do Dia das Mães, ele nos disse, com o seu jeito transparente e risonho, que não importa para onde nos voltemos, sempre há espaço a nossa volta. E que no espaço contido na ponta de uma agulha, há milhões de seres, visíveis ou não. E que todos estes seres já foram nossas mães! Afirmou, em seguida, que logicamente temos que pagar quando contratamos alguém para cozinhar, cortar a grama de nossos jardins e lavar as nossas roupas. Prosseguiu, então, constatando o óbvio de que todos nós fomos cuidados, quando bebês, durante muitos anos, por pessoas que zelaram por nossa alimentação, sono e saúde. Chagdud Rimpoche terminou esta reflexão nos indagando: “Já pensou se eles lhe apresentarem a conta?”...
Eis uma lição esquecida: todos nós somos filhos e filhas do Cuidado. E o Terapeuta é alguém que encarna, em algum grau, a arte de um cuidado integral.

O cuidado terapêutico solicita uma escuta ampla e inclusiva, bem como uma hermenêutica aberta, que não se circunscreve às meras explicações analíticas, capaz de também fazer a leitura dos múltiplos sentidos da enfermidade, já que o sintoma pode ser compreendido como uma resposta da inteligência profunda do organismo, que denuncia uma contradição ou um desvio existencial. Sobretudo, trata-se de jamais considerar o outro como um “doente” ou um “objeto a ser tratado e reparado”. Reconhecer a nobreza inerente ao semblante humano, na sua condição de Sujeito, talvez seja a característica mais fundamental do verdadeiro Terapeuta.

Uma das dez orientações maiores do CIT, concebidas por Jean-Yves Leloup, é a ética da bênção. Abençoar é ser capaz de dizer uma boa palavra com um bom olhar. Jamais rotular e reduzir o outro a uma doença, que é sempre um processo, um momento de passagem. A autêntica conexão terapêutica é com a dimensão do Sujeito que o outro encarna, apesar de todas as feridas e os sofrimentos inerentes à condição humana. Diz o poeta Pablo Neruda:

Se cada dia cai dentro de cada noite,
então há um poço onde a luz está retida.
Basta sentar ao lado deste poço
e pescar luz caída,
com paciência.


O Terapeuta é um pescador de luz caída... Com benevolência e paciência ele se conecta com a nobreza intrínseca a cada ser humano, fazendo aliança com o seu melhor. O mais imprescindível é se conectar com a essência luminosa que se encontra no âmago de tudo e de todos. Pois é a partir da luz que a escuridão se desfaz...

Há um segredo importante: o olhar é estruturante. Fixar o olhar nas deficiências do outro, estrutura as mesmas no outro... e em si mesmo. Fixar o olhar no melhor do outro, estrutura este melhor no outro... e em si mesmo. A porta na qual batemos é a que vai se abrir, naturalmente. O Terapeuta é quem bate na porta da saúde e da plenitude, sem deixar de também cuidar do sofrimento e do sintoma. Cuidar, cuidar-se.

O ícone que se tornou o símbolo do CIT no Brasil é a imagem do Unicórnio. O seu chifre não-dual simboliza a integração do hemisfério do saber com o do ser, da razão com o coração, da sensação com a intuição, da efetividade com a afetividade, do masculino com o feminino, da análise com a síntese. Segundo uma antiga escola de sabedoria, o chifre do Unicórnio representa a memória original da Luz.

Penso numa estória que aprendi com o amigo Rabino Bonder: Um velho rabino reuniu o seu povo numa grande assembléia e anunciou: “Tenho uma boa e uma má notícia para contar. A má notícia é que o teto da nossa sinagoga está para desmoronar e a reconstrução custará milhares de dólares. E a boa notícia é que nós temos os recursos para empreender esta obra”. Depois do sobressalto inicial, todos suspiraram de alivio. Então, alguém indagou: “E onde estão estes recursos, senhor?” E o sábio respondeu: “No bolso de vocês!”


Se o frágil teto da nossa civilização encontra-se desabando, sob o peso de suas próprias contradições – egocentrismo, perda dos valores fundamentais, violência, corrupção, degradação ambiental, cinismo, desamor... – é bom lembrar que não nos faltam os instrumentos para apreender um processo de reconstrução. Com os recursos, que se encontram nos bolsos de nossas mentes, almas e consciências, somos todos convocados para um mutirão de cuidado inclusivo, total, essencial. Trata-se de transmutar a crise de demo-lição numa ocasião de reconstrução. É tempo de conspirar pelo Templo do Cuidado... antes que seja tarde demais.

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